A condição feminina
Tendo ciência das inúmeras funções impostas à mulher, reflitamos sobre aquela que lhe é mais intrínseca: a maternidade. Apresento-lhes um trecho que esclarece sucintamente sobre a forma como essa imposição se mantém:
"Não seria possível obrigar diretamente uma mulher a parir: tudo o que se pode fazer é encerrá-la dentro de situações em que a maternidade é a única saída; a lei ou os costumes impõem-lhe o casamento, proíbem as medidas anticoncepcionais, o aborto e o divórcio." (BEAUVOIR, 1970, p. 79)
Desta forma, seria inconcebível negar a maternidade como a maior estruturante da condição feminina. É através dela, que todos os argumentos citados anteriormente sobre a submissão do gênero se apoiam. Ainda de acordo com as reflexões de Simone (1970), compreendemos o papel da sociedade na desestigmatização da mulher como reprodutora e responsável exclusiva pelas funções da maternidade. Simone traz ainda relações entre a carga que é criar um filho em tempo integral enquanto encara o desafio da vida pública, e como os encargos maternais poderiam apresentar-se à mãe se a mesma tivesse auxílio durante a gravidez e o desenvolvimento da criança.
A importância da sociedade no que diz respeito à criança, pode ser melhor compreendida quando trazemos ao estudo, os dados coletados por Comegno (2003). Ela relaciona às mães educacionalmente instruídas as altas taxas de escolaridades dos filhos. Desta forma, garantir que a mãe tenha acesso, bem como condições de permanecer e concluir os estudos, não só viabiliza aquisições pessoais, como também eleva os níveis de instrução de toda uma geração e consequentemente, da sociedade em geral. Estas garantias de permanência da mulher nos espaços públicos estão diretamente relacionadas à oferta de equipamentos coletivos auxiliadores como creches e escolas. Nessa perspectiva, Comegno (2003), ressalta o compartilhamento da função reprodutiva, não sendo portanto apresentada como uma punição à mulher, e sim como uma alternativa para que os filhos não configurem uma sentença negativa à condição feminina da maternidade.
Infelizmente esse apoio da sociedade à maternidade ainda se revela muito pouco eficiente. Existe um provérbio africano que diz: “É preciso uma aldeia inteira para educar uma criança” [It takes a village to raise a child], que na prática pode ser trocado por um outro provérbio que diz: “Quem pariu Mateus que o embale”. Quem sugere esta troca é Danyelle Santos (2017), enquanto compartilha seu relato na publicação “Ser mãe não é profissão”. Danyelle exemplifica e sintetiza a realidade da condição materna no nosso contexto atual, citando todas as formas sobre como tentou se inserir na esfera pública após assumir a função materna e finaliza com a pertinente reflexão:
“Porque mãe não precisa ter outros quereres, outros sonhos, outras invenções. Mãe, nesta sociedade, tem que se bastar como mãe. Ou você entra na fila da creche pública, que nem sempre tem vaga e nem sempre é tão boa ou perto da sua casa, ou você despeja seu salário em uma creche particular. Ou você trabalha o dia todo e mal vê a cria ou você abandona sua carreira. Não há meio-termo. [...] Para conseguir seguir sendo uma mulher profissional, eu precisaria explorar a minha mãe (mantê-la na minha casa cuidando dos filhos todos os dias) ou explorar uma outra mulher (que ganharia um salário muito inferior ao merecido). Note: eu só falei de mulheres. Por quê? Porque homens nunca terão esse problema. Homens jamais precisarão pensar com quem os filhos vão ficar ao aceitar um emprego e jamais responderão, em entrevistas, se têm filhos. O cuidar do outro não é uma questão para o homem. O cuidar do outro é uma questão que existe apenas no mundo das mulheres.” (SANTOS, 2017, grifo meu)
Essa realidade não é algo recente ou fruto da situação política atual. Muito pelo contrário. Tudo o que apresentei até aqui elucida claramente a condição da mulher - e consequentemente da mãe - na sociedade de classes. É justamente em função da posição da mulher à margem do cerne das decisões e preocupações públicas que Maria Amélia (1993) retrata o início, em 1975, do “Movimento Custo de Vida”, onde foram feitas reivindicações do controle de vida, melhores salários para as mulheres e creches/escolas públicas para seus filhos, através da Carta das Mães. Em 1979, o “Movimento de luta por creche”, durante o I Congresso da Mulher Paulista, reclama novamente por creches, desta vez nas proximidades aos locais de moradia e trabalho, como responsabilidades do Estado e das empresas contratantes. Elas exigem também que os espaços acolham as crianças de forma humanitária e que seja levada em consideração a participação dos pais nas sua concepção. Eis que, em virtude das ações das mães, surge no brasil a primeira rede municipal de creches, com 134 unidades.
“A luta por creche levou a um grande debate ideológico a respeito do papel da mulher e da família. A creche é mesmo o lugar ideal para educar as crianças? O desempenho das feministas foi valioso para combater a ideia de que o filho só será bem criado com a participação direta da mãe. ‘O filho não é só da mãe’ é o primeiro slogan do movimento unificado, uma contribuição das feministas” (TELES, 1993, p. 104, grifo meu)
E não foram só as creches o resultado da luta daquelas mães. Em 22 de junho de 1978 foi realizada uma manifestação que marcou o início das reivindicações pelo fim da ditadura militar. É extremamente importante ressaltar a significância da luta da mulher nas conquistas sociais comuns à todos os cidadãos. Sua presença na vida pública é peça fundamental para que o modo de produzir o espaço e suas dinâmicas de poder sejam repensados. Enquanto as mães forem impostas a permanecer na condição secundária e coadjuvante, a sociedade jamais conseguirá atingir o mínimo da equidade que lhe é necessária.