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O contexto atual

A reflexão sobre o público e o privado é atravessada por questões políticas e econômicas que mostram que a presença da mulher no meio público é inevitável, mesmo com as construções que definem seu espaço como sendo o privado. Isto se configura através da conformação da família contemporânea. Nela, a mulher além de assumir a função reprodutora, muitas vezes precisa tomar - total ou parcialmente - a função produtora, sendo ou não a chefe da família, e nem por isso, dividindo a função reprodutora com os demais que compõem o lar. Essa constatação da presença da mulher no meio público “não significa automaticamente a ocupação do mesmo como espaço próprio, ou mais grave ainda, como espaço público, lugar da cidadania” (GOUVEIA, 2005, p. 1), significa apenas que a mulher precisa se adaptar a um ambiente que para ela e por ela não foi projetado. Um exemplo desta adaptação é a apropriação do transporte público, que segue a lógica do transporte privado - este, em sua maioria sob a posse masculina - e não leva em consideração os percursos mais complexos realizados pelas mulheres (MARTINEZ, 2014). A complexidade se encontra no fato de que precisam convergir trajetos entre a creche, o supermercado, o local de trabalho e a residência, movimentando-se de uma forma não-linear pela cidade. É, seguindo esta lógica multifuncional da mulher, que pode-se afirmar: 

“a mulher leva consigo o espaço doméstico para o público, e nesse sentido é necessário exigir do público, que este lhe dê condições de participar desse espaço. Isso se traduziria, no caso do planejamento, em metodologias que garantam essa participação, mas também serviços, equipamentos, que permitam que a vida doméstica possa coexistir com a pública.” (SANTORO, 2008, p. 14, grifo meu)

Entendamos aqui que para poder participar do espaço público, é fundamental que haja também a emancipação da mulher quanto às solicitações do trabalho doméstico, reduzindo-o a uma parcela insignificante através do compartilhamento com os demais integrantes do lar. Desta forma, a mulher poderia ingressar totalmente no âmbito público e na função produtora (BEAUVOIR, 1970). Ainda sobre este tópico, é necessário que haja a participação da mulher inclusive nos locais onde as decisões acerca da cidade são tomadas, pois somente ela compreende a carga existente em sua polivalência compulsória. Sim, compulsória. Podemos exemplificar esta afirmação com algo que temos inclusive como uma conquista imensa para a mulher: a titulação de terras em seu nome. Gouveia (2005) explica que, apesar do viés empoderador que qualifica subjetivamente a mulher-mãe como chefe do lar, esta conquista deixa explícita a condição da mulher como “recurso mais confiável”, sendo ela responsável pela sobrevivência da família em vez de adquirir a titulação pelo simples fato de ser cidadã. Assume-se e aceita-se a posição do homem como passível de ser irresponsável, como se a falta de comprometimento com o lar fosse algo natural do gênero masculino. 

Retomemos agora o raciocínio para a polivalência feminina. Esta condição, que Santoro (2008) referencia como sobre-trabalho, leva a mulher a uma situação onde são eliminados o lazer e a sociabilidade. Aos poucos, sua experiência pública torna-se apenas o reflexo de sua atribulação privada. Isto se dá por inúmeros fatores já mencionados até aqui, voltando com mais ênfase ao transporte público. Vimos que ele é equivocadamente alocado para fazer trajetórias lineares que ligam apenas dois pontos: a casa e o trabalho. Porém, as opções de lazer e transporte públicos dizem respeito aos dois gêneros, certo? Seja através da escassez de oferta ou dos trajetos longos, tanto o homem quanto a mulher são afetados com esta exclusão. No entanto, o que os diferencia é justamente esta sobrecarga funcional da mulher, que inviabiliza ainda mais o tempo disponível para se submeter ao sistema falho de deslocamento.

“Enquanto existirem duas esferas de trabalho - um trabalho remunerado, reconhecido e visível, e outro não remunerado, não reconhecido e invisível -, não se poderá falar de uma nova ordem simbólica. [...] As mulheres trabalham mais horas e ganham menos, pois a maior parte dessas horas é dedicada às invisíveis tarefas da família, sem as quais não há produção.” (MARTINEZ, 2014, p. 210, grifo meu)

Desta forma, começamos a explorar a invisibilização da mulher na cidade através da ótica que compreende as responsabilidades que recaem sobre ela, a falta de oportunidades de se desvincular destas responsabilidades e das imposições feitas pelo sistema atual para que ela tenha acesso ao meio público de maneira completa.

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