A participação da criança na sociedade
Eu, você e qualquer pessoa neste mundo fomos crianças algum dia. Qual seria então o motivo pelo qual este sujeito seja tão ignorado no processo de planejamento urbano? Até o capítulo anterior, muito falei sobre a inclusão da mulher na vida pública e sobre como é fundamental que haja amparo da sociedade para que sua permanência seja garantida. Vamos compreender agora um dos fatores que agrava a segregação sócio-espacial da mulher e impedem que ela exerça seu direito à cidade: A inviabilização da vida das crianças no cotidiano urbano.
A apropriação do espaço público pelas crianças, além de permitir a integração da mulher na cidade, também contribui para o desenvolvimento da sociedade. Estimular a coexistência geracional colabora no processo de humanização da urbe, promovendo mais tolerância com as diferenças, fortalecendo laços e instigando o senso de responsabilidade com o próximo. Conversando com diversas mães durante minha pesquisa, foram incontáveis os relatos de adultos ignorando ou agindo com indiferença com os pequenos. Isto ocorre porque a criança não é vista como indivíduo, e quem afirma isto não sou eu: é uma percepção geral entre as mães. Elas contam que poucas são as pessoas que se dirigem às crianças em busca de algum diálogo. A ideia da interação é sempre baseada em um monólogo, onde o adulto detém o poder de fala e de escolha, e à criança cabe apenas (supostamente) obedecer e compreender as informações recebidas. Quando a expectativa de um interlocutor inerte é quebrada, reafirma-se uma segregação fortemente embasada em argumentos falaciosos sobre o quão desconfortável se torna um ambiente com a presença de crianças, alegando que são muito barulhentas e expansivas. O que verdadeiramente acontece é a existência de um enorme vazio empático, onde pouco se procura compreender perspectivas diferentes das do sujeito-padrão. Uma vez que nossa sociedade entra em um círculo segregatório de privilégios estruturais onde apenas indivíduos produtores têm vez, a diversidade se perde, e com ela, o sentido de empatia fica cada vez mais distante do cotidiano nas cidades.
Com base nestas percepções surge a emergente necessidade de trabalhar dinâmicas que explorem a interação entre os adultos e as crianças. Jane Jacobs destaca em seu livro “Morte e vida de grandes cidades” sobre o papel dos cidadãos comuns no processo de incorporação das crianças à sociedade.
“As pessoas da cidade que têm outros trabalhos e afazeres [...] têm condições ao menos de supervisionar a recreação informal das crianças[...]. Elas fazem isso enquanto se ocupam de suas outras atividades. [...] Na prática, é só com adultos nas calçadas que as crianças aprendem - se é que chegam a aprender - o princípio fundamental de uma vida urbana próspera: as pessoas devem assumir um pouquinho de responsabilidade pública pelas outras, mesmo que não tenham relações com elas. Trata-se de uma lição que ninguém aprende por lhe ensinarem. Aprende-se a partir da experiência de outras pessoas sem laços de parentesco ou de amizade íntima ou responsabilidade formal para com você, que assumem um pouquinho da responsabilidade pública por você.” (JACOBS, 2000, p.88-90)
Desta forma, é criando situações de contato entre pessoas de gerações distintas que estimula-se, além da integração da criança na sociedade, um desenvolvimento emocional dos adultos, contribuindo positivamente nas relações entre si. Faz-se necessário que haja um espaço adequado para que as crianças se sintam respeitadas e valorizadas enquanto cidadãs. E como é este espaço? Essas questões vão além do que diz respeito apenas à segurança e infraestrutura básica (calçadas, faixas de pedestre, etc). É necessário compreender durante o processo projetual que a percepção da criança é totalmente diferente da percepção do adulto, que seu tempo e sentidos são diferentes, e assim criar um espaço que explore as possibilidades trazidas pela imaginação, com cores, texturas e cheiros que permitam uma apropriada interação deles com o meio e com os demais cidadãos. Repito: para projetar um espaço capaz de comportar este cidadão deve-se levar em consideração a perspectiva da criança. Devemos abandonar a ideia de que ela configura um interlocutor inerte.
Célia Regina, em seu vídeo “Brincâncias Urbanas” nos traz um pouco da perspectiva da criança como um ser ativo. No vídeo, acompanhamos duas crianças em seus percursos pela cidade, onde eles, de acordo com seus desejos, escalam muros, caminham sobre bancos, realizam trajetos não-lineares pela calçada, explorando cada espaço disponível. Essa experiência existe e não pode ser negada. O espaço destinado a eles deve ser pensado junto ao espaço comum da cidade, não podendo limitar-se aos playgrounds extremamente segregadores. Falo isso pois é nosso dever ter a consciência de que, da mesma forma que os adultos, as crianças estão sob as mesmas regras de segurança urbana porém, são muito mais suscetíveis à violência do que eles. Excluí-las da dinâmica urbana, colocando-as em um espaço com baixa diversidade, longe da visibilidade e audibilidade dos adultos é uma prática que propicia ainda mais essa suscetibilidade à violência (JACOBS, 2000, p. 84).
É necessário compreender ainda que o processo de desenvolvimento da criança não obedece uma linearidade, não é estabelecido por regras. O ser humano é composto de intersecções que atravessam sua existência aos poucos. Ao ter contato com variadas atividades e personalidades é que se absorve e compreende cada uma destas intersecções e começa-se a perceber as relações entre elas. Desta forma, Jacobs (2000) nos mostra que, não há sentido algum em formalizar o surgimento destas relações: elas devem surgir de maneira intuitiva e sedutora. O atrativo em viver as experiências que somam ao amadurecimento do ser está diretamente relacionado às sensações proporcionadas por elas, através da liberdade de descobrir o mundo e o próprio corpo de uma maneira particular. Jacobs (2000) complementa dizendo que “Não tem sentido valorizar demais essas atividades. Não tem sentido ir a algum lugar formalmente para fazê-las de acordo com um plano formal.”
Aceitá-los em meio ao caos da cidade é compreender que eles têm desejos, anseios e direitos, e que crescendo com a consciência de que são levadas em consideração, elas se tornam adultos mais tolerantes e empáticos, construindo uma sociedade com muito mais equidade da que vivemos atualmente.