A realidade das mães acadêmicas da UFSC
No texto anterior muito foi citado (e embasado teoricamente) sobre da necessidade de uma nova forma de produzir as cidades, seguindo perspectivas interseccionais e validação de experiências vividas. Desta forma, a partir deste ponto, o texto passa a ser construído unicamente de acordo com percepções provenientes de vivências pessoais que surgiram durante a investigação, com apoio de alguns pontuais dados quantitativos coletados em campo.
Ao longo de 58 entrevistas (anexadas a este caderno) com mulheres-mães acadêmicas ou relacionadas ao ambiente acadêmico, considerações muito semelhantes foram notadas em comum entre elas. As principais tratam do desconhecimento (ou dissimulação) institucional das leis que amparam a mulher grávida e da intolerância e assédios vividos pelas alunas no meio acadêmico. Muitas mulheres relatam o afastamento do ambiente acadêmico durante o puerpério em função do não cumprimento de leis e de posicionamentos intransigentes por parte dos professores. Na maioria das vezes, o afastamento temporário significou um abandono da vida acadêmica em detrimento da maternidade. Ressalto também outro aspecto do abandono do curso de graduação, apontado pelas mães de forma simplificada e direta, demonstrando empiricamente o que foram necessárias algumas páginas teóricas sobre a divisão das funções reprodutivas e produtivas: a criação solo. Vivencialmente, é inegável a condição atual, onde a mulher por ser mãe assume a responsabilidade integral no que diz respeito à criança. Destaco aqui que a criação solo não ocorre apenas nos casos onde os pais são separados. Ela é uma realidade vivida por mães em relacionamentos estáveis com seus companheiros e pais de seus filhos. Isso se dá, como discorrido anteriormente, em função da divisão por gênero das funções.
Correlacionando a divisão funcional por gênero com as incoerências do sistema econômico vigente, as mulheres-mães aparecem como mais prejudicadas. Isto ocorre pelo fato de que a divisão das funções produtivas e reprodutivas ocorre unilateralmente, sendo a função reprodutiva é exclusivamente destinada à mulher, diferente da função produtiva, que passa a ser exercida tanto pelo homem quanto pela mulher. A situação resulta então na dupla ou, como é o caso do meu recorte, a tripla jornada da mulher-mãe.
Outros aspectos que merecem destaque nos relatos é a invisibilização da estudante que é mãe. As mães do Coletivo MãEstudantes trazem, entre outras reivindicações importantes, uma em especial que demonstra como essa invisibilização se dá: o desinteresse da UFSC no que diz respeito a dados que quantifiquem com exatidão as mães matriculadas na universidade. Apenas a Pró-Reitoria de Assuntos Estudantis (PRAE) possui dados que fazem referência aos alunos regularmente matriculados que possuem filhos. A PRAE relata um total de 237 pais e mães entre os alunos em situação de vulnerabilidade socioeconômica, dos quais 171 são mulheres. Mesmo que representando uma parcela ínfima da quantidade total de alunos da graduação da UFSC (29.827, sendo 14.254 mulheres e 15.573 homens, em abril de 2017), o fato de 72,2% dos alunos em situação de vulnerabilidade com filhos serem mulheres expressa vivencialmente as condições teorizadas na parte 1 deste estudo. É evidente agora, ainda mais do antes, o local ocupado pela mulher-mãe na sociedade. É a mulher o sujeito que não possui renda, que não possui privilégios, que depende de políticas públicas ineficientes para manter-se na resistência em busca de uma realidade diferente para si e para sua cria. Obviamente não podemos desconsiderar toda a construção de classes que atravessa nossa sociedade, bem como essa construção afeta o acesso das classes menos privilegiadas a políticas contraceptivas.
Mas afinal, o que são 171 alunas pobres em meio a um total de 14.254 mulheres matriculadas na UFSC? O que fazer quando apenas 2,2% das mulheres realmente precisam de políticas de permanência? Nada, não é mesmo? Afinal, não faz sentido investir uma renda destinada a estruturas para pesquisas (reforço: a serem executadas pelo sujeito-padrão) em políticas de permanência para uma minoria ínfima dos estudantes da universidade. Faz menos sentido ainda quando comparamos com o total geral de alunos da UFSC: elas somam apenas 0,57% da população acadêmica, junto com os pais, essa “classe” representa apenas 0,79%. Menos de um por cento! Então, realmente, por essa ótica, é até coerente dizer que “quem pariu Mateus que o embale” e permanecer com a atenção voltada àqueles que de fato representam uma parcela significativa e que garantidamente vão trazer retorno positivo ao investimento feito. A questão é exatamente essa. Será que realmente temos apenas 0,79% da população acadêmica com filhos? Não temos como saber, porque essa demanda é negada. E não podemos resolver um problema que não conhecemos. A lógica é simples e cruel.
Gráficos 1 e 2: dados PRAE (acima) e dados DAE (abaixo). Valores referentes aos cursos de graduação.
O texto “Mães estudantes: Uma demanda que o sistema ignora”, no portal Cientista que Virou Mãe, fala sobre como essa invisibilização não ocorre apenas na graduação, sendo uma cultura construída desde muito antes desta etapa da vida da mulher. Fernanda Vicente apresenta diversos dados que comprovam que o sistema não dá o amparo necessário à mulher-mãe em momento algum de sua trajetória educacional. Ainda sobre essa demanda, o Coletivo Maruim em matéria “A rotina das mães universitárias” retrata um pouco mais da realidade que é ser uma mãe estudante.
Voltando um pouco às percepções resultantes do processo investigatório, cabe ressaltar ainda outros aspectos que impossibilitam ou dificultam a permanência da mulher-mãe na universidade: Faltam espaços adequados para crianças na universidade ou nas proximidades dela, sejam eles espaços para auxiliar no cuidado com a criança ou espaços de apoio para mães; falta inclusão de crianças em equipamentos comuns como Biblioteca Universitária e o Restaurante Universitário; faltam banheiros equipados com dispositivos de apoio como fraldários e cabines infantis/familiares; a metodologia de ensino de muitos professores é engessada e inflexível, impossibilitando a compatibilização da rotina acadêmica com as outras funções desempenhadas pela mulher-mãe; o mobiliário existente nas salas de aula não contempla mulheres grávidas e/ou com crianças pequenas; os caminhos atuais que fazem as conexões entre os principais pontos da UFSC e fora dela são mal iluminados, sem pontos de descanso e sem o mínimo de acessibilidade necessária para transitar seja enquanto grávida, conduzindo um carrinho de bebê ou levando uma criança pequena, isso sem contar na gama de problemas de acessibilidade PNE que esse aspecto levanta; auxílios insuficientes para a demanda exigida (como auxílio moradia, creche e bolsa estudantil).
O que concluímos com estas reivindicações? Além do fato de que o espaço não acolhe, é nítida a marginalização da mulher-mãe na sociedade. Se é ela quem cuida da cria e esta, por sua vez, não tem espaço em meio à universidade, logo, a mulher-mãe também passa a não ter. Então, como resolver isso? Não é uma questão facilmente solucionada com a implantação de uma creche (ou reativação do Flor do Campus, creche que atendia à demanda acadêmica e que foi desativada em função do pedido de reintegração de posse; a edificação atualmente encontra-se em estado de abandono) a fim de colocar a criança num ambiente exclusivo (ou excludente), onde ela não vai ser vista, com a garantia de que ela não causará transtornos à comunidade universitária. Neste caso, a solução jamais será pontual. Para compreender o motivo, é simples: basta pensarmos sobre o que acontece quando o turno da criança na creche acaba. E agora, pra onde vai a mãe, já que com ela está - novamente - a criança? Ela tem espaço de estudo, espaço de sociabilidade ou até mesmo espaço para se alimentar junto aos demais estudantes? A resposta você sabe. Afinal, qual a garantia de permanência quando não existe uma política de sociabilidade entre adultos e crianças? Se não há convivência, não há estímulo de tolerância, não há empatia, não há troca. É fundamental que ocorra não apenas uma solução pontual, mas sim um conjunto complexo de ações que introduzam de fato a mulher-mãe e a criança na sociedade, apenas desta forma o estado de inércia é rompido e o movimento de mudança começa a surgir.