Compreendendo a mulher
Desde que o sexo biológico do feto é revelado, diversos ideais surgem sobre o futuro daquele ser. Estes ideais são o que chamamos de papéis de gênero. O papel de gênero nada mais é do que as funções pré-definidas para um ser humano levando em consideração única e exclusivamente seu sexo biológico. Estes papéis de gênero se consolidaram ao longo dos anos junto às construções sociais determinadas histórica e culturalmente. São eles quem definem que a função reprodutora diz respeito à mulher enquanto a função produtora ao homem, em vez de dizerem respeito a ambos de maneira igualitária. Esta relação entre trabalho produtivo e reprodutivo merece uma atenção especial, pois é através dela que as dinâmicas sociais e as relações de poder entre os gêneros se desenvolvem. Compreendamos então de uma forma mais sucinta esta divisão sexual do trabalho: enquanto a função produtora é aquela que é remunerada, produz mercadoria e se desenvolve no ambiente público, a função reprodutora é aquela responsável pela manutenção da vida e suprindo suas necessidades mais básicas e diretas, não cabendo remuneração a quem a exerce e sendo desenvolvida no ambiente privado.
Retomamos o raciocínio então para as predefinições estabelecidas pelo sexo biológico. A forma como o ser deve apresentar-se ao mundo também cabe aos papéis de gênero: Compreensão, compaixão, zelo, delicadeza, sutileza, vaidade e emoção configuram facilmente uma figura feminina na mente do interlocutor. Já quando falamos em força, coragem, rispidez, determinação e razão, é uma figura masculina que aparece como primeira opção. Estas imposições funcionais e comportamentais condicionam o futuro do indivíduo, e é a partir deste ponto que aceitamos o que nos é apresentado como destino e almejamos apenas as conquistas reservadas ao nosso local. É, então, que Simone afirma:
Ninguém nasce mulher: torna-se mulher. Nenhum destino biológico, psíquico, econômico define a forma que a fêmea humana assume no seio da sociedade; é o conjunto da civilização que elabora esse produto intermediário entre o macho e o castrado que qualificam de feminino. Somente a mediação de outrem pode constituir um indivíduo como um Outro. (BEAUVOIR, 1970, Vol. 2, p.9)
Sendo assim e tendo em mente estas construções, prossigamos. A mulher nasce com a função básica de engendrar, tornando-se mãe e consequentemente, responsável pelo cuidado daquilo que gerou, bem como do ambiente que abriga a si e sua família. O homem apenas nasce com a premissa de ser. Exatamente isso: ser. Isto pode ser explicado levando em conta a colocação de Bourdieu (2002, p. 9), que nos traz a seguinte questão: “A força da ordem masculina se evidencia no fato de que ela dispensa justificação: a visão androcêntrica impõe-se como neutra e não tem necessidade de se enunciar em discursos que visem a legitimá-la”. Kühner, a tradutora do livro “A dominação masculina” de Pierre Bourdieu (2002, p. 9) explica que “Muitas vezes já se observou que, tanto na percepção social quanto na linguagem, o gênero masculino se mostra como algo não marcado, de certa forma neutro, ao contrário do feminino, que é explicitamente caracterizado.”
Entendamos aqui então que o “ser” em questão é a delimitação para o sujeito padrão, sendo nele centradas todas as decisões e definições do mundo ao nosso redor. É pensando nele - e tomando um exemplo básico dentro da nossa vivência - que o movimento moderno projeta as cidades em setores. É ao homem que pertence o mundo e é o homem que organiza o mundo. De acordo Beauvoir (1970), a mulher encontra-se então na posição do Outro, daquilo que não é o centro do pensamento político e social de um modo geral.
Neste ponto, o estudo começa a tomar alguma forma. Ao compreendermos que o local ocupado pela mulher é secundário, que suas escolhas não pertencem a si e o contexto que a envolve não é pensado de acordo com sua perspectiva, começamos a repensar o modo de como a produção do espaço é feita. Sendo assim, entramos na questão de que não devemos analisar a mulher apenas como o Outro, um ser generalizado e caracterizado por não ser alguém:
Se alguém ‘é’ uma mulher, isso certamente não é tudo o que esse alguém é; o termo não logra ser exaustivo, não porque os traços predefinidos de gênero da ‘pessoa’ transcendam a parafernália específica de seu gênero, mas porque o gênero nem sempre se constitui de maneira coerente ou consistente nos diferentes contextos históricos, e porque o gênero estabelece interseções com modalidades raciais, classistas, étnicas, sexuais e regionais de identidade discursivamente constituídas. Resulta que se tornou impossível separar a noção de ‘gênero’ das interseções política e culturais em que invariavelmente ela é produzida e mantida. (BUTLER, 2003, p. 20, grifo meu)
Sendo assim, devemos evitar uma solução generalista e excludente. Torna-se então imprescindível levar em consideração as esferas que compõem este Outro, os inúmeros contextos aos quais ele pode estar inserido e às construções sociais pertinentes a cada uma dessas esferas. Desta forma, conseguimos delimitar com mais acuidade quais são, de fato, as necessidades de quem não é contemplado.
Porém, tomando como sujeito de estudo este Outro, definindo-o como sendo a mulher e assumindo-a como um ser interseccional, questiona-se a necessidade de categorizá-la como um sujeito em especial. Se devemos estudar as diversas esferas às quais está inserida, ao mesmo tempo estamos assim afirmando que a mesma participa de todas as situações onde há diferenciação social, racial, econômica, etc., sendo então supostamente contemplada em sua condição atual. Desta forma, tentando compreender o porquê da mulher não reagir contra a - e muito menos se reconhecer na - posição de Outro, temos que:
Não há na cisão entre as classes nenhuma base biológica. No trabalho, o escravo toma consciência de si próprio contra o senhor, o proletariado sempre sentiu sua condição na revolta, voltando dessa maneira ao essencial, constituindo uma ameaça para seus exploradores; e o que ele visa é o desaparecimento como classe. [...] a situação da mulher é diferente, em particular por causa da comunidade de vida e interesses que a torna solidária do homem, e por causa da cumplicidade que ele encontra nela. Nenhum desejo de devolução a habita[...]. (BEAUVOIR, 1970, Vol. 1, p. 78, grifo meu)
Desta forma, estudar a mulher torna-se uma tarefa de estudar não só as esferas às quais está inserida, mas também as relações de poder entre estas diferentes esferas e internamente a cada uma delas, aquelas estabelecidas entre os gêneros.